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Mas 'tás parvo oh quê?


Há uns dias atrás um amigo meu partilhou qualquer coisa no Facebook. Essa coisa chamou-me tão pouco a atenção que nem me lembro exactamente o que foi, mas lembro-me que ele comentou "E ainda há quem acredite no António Costa!" Ontem vi uma outra partilha, de um outro amigo, com um vídeo de um pastor que socava o ar na direcção de um crente. Tal era a força divina com que o pastor esmurrava a atmosfera que o crente, a uns 2 ou 3 metros do pastor, foi projectado para trás apesar de ter quatro homens a segurá-lo. Um deles até se desequilibrou! Quer à primeira partilha, quer à segunda, liam-se comentários de estupefação ou gozo à credulidade dos ingénuos que ainda acreditam uns no António Costa, outros num pastor com poderes de banda desenhada.

Este post não é sobre o António Costa ou sobre o pastor, mas sobre ser-se crédulo.

Vamos jogar um jogo que eu vou chamar "Mas 'tás parvo oh quê?"... joga-se assim: para cada uma das linhas abaixo, diz "mas 'tás parvo oh quê?" caso seja parvo acreditar no que está nessa linha. Para o efeito ser perfeito prolonga a palavra parvo. Tudo pronto?

  1. Somos visitados por extra-terrestres que nos raptam e fazem pesquisa com probes
  2. Os jogos olímpicos, quando realizados em Atenas, devem ser em honra de Zeus.
  3. Está demonstrado cientificamente que a sangria, enquanto prática clinica, funciona.

Vou assumir que disseste ou pelo menos pensaste "mas 'tás parvo oh quê" três vezes, caso contrário, temos de falar. Mas vamos continuar com base nessa assunção... Existem muitas pessoas que juram a pés juntos que foram raptadas e que foram feitas experiências menos dignas na sua genitália. A esmagadora maioria das pessoas não acredita nelas mas não sabe bem porquê. É um tema interessante que deixo para outra altura mas para já, fica a seguinte ideia, muito útil para o resto do post:

Não existem evidências suficientemente fortes para suportar esta afirmação.

Em relação e aos jogos olímpicos em honra de Zeus, diria que isto seria sempre um problema cultural mas eu não escolhi Zeus por acaso... escolhi porque praticamente ninguém acredita em Zeus. Porquê? Porque é que quase ninguém acredita em Zeus, ou em Jupiter o seu equivalente romano? Porque é que quase ninguém acredita em Odin? Já agora... porque é que quase ninguém acredita em sangrias, essa "poderosa" prática medicinal que retirava humores das pessoas? Por muitas voltas que se dê vamos acabar, mais cedo ou mais tarde, à frase acima deste parágrafo: porque não há evidências suficientemente fortes. Estamos de acordo? Excelente! Vamos a mais um ronda!

  1. A posição e alinhamento dos corpos celestes influencia directamente a minha vida.
  2. Todos os seres humanos têm uma alma que existe para além do corpo físico.
  3. Está demonstrado cientificamente que a homeopatia, enquanto prática clinica, funciona.

Ui... mais difícil, certo? Vamos começar pela primeira... o Sol e a Lua são corpos celestes e claramente influenciam a minha vida e a tua. E fora estes dois ou, vamos chamar os bois pelos nomes, a astrologia? Não existem evidências de que astrologia faça aquilo que diz fazer. E a alma? Não existem evidências que os seres humanos têm algo que transcenda o seu corpo físico. E finalmente, a homeopatia... bem, sobre a homeopatia temos de ter uma conversa num outro post mas para os efeitos deste fica reduzida a um "não há evidências que funcione".

Onde é que eu estou a querer chegar com isto? Todos nós somos crédulos, uns mais do que outros. Alguns têm maior facilidade em aceitar as coisas que corroboram aquilo em que já acreditam. Outros tendem a ser mais cépticos, especialmente em relação às coisas que não corroboram aquilo em que já acreditam. Eu acredito que não devemos acreditar naquilo que não temos bons motivos para acreditar. Mas todos, sem excepção, precisamos de acreditar em qualquer coisa, certo?

Entendo e aceito que tens de acreditar em homeopatia, na alma ou em astrologia e em tantas outras coisas para as quais eu acho que não existem razões suficientes para se acreditar. Posso conversar contigo, apresentar os meus argumentos e ouvir os teus mas entendo e aceito que ter de acreditar possa ser, para ti, justificação suficiente ao ponto de conseguires racionalizar a tua crença. Isso não me faz melhor pessoa que tu nem te faz a ti melhor do que as pessoas que acreditam no pastor com poderes de banda desenhada ou no António Costa.

Acho que está na altura de entendermos que os outros não são burros, nem estúpidos nem mais crédulos do que nós próprios.

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