Esta série de posts é dedicada aos textos sagrados de diversas religiões com o único objectivo de ter uma interpretação em primeira mão. Não sou nem quero ser teólogo mas quero saber o que é que eu interpretaria destes textos sem filtros nem interpretações de outros que não eu e a minha experiência pessoal. Não está em causa a fé de ninguém mas tão somente o reconhecimento do papel central da religião na vida de biliões de seres humanos e, por consequência, na sociedade em que vivemos.
Ler o Alcorão foi penoso. Pareceu-me um texto consistentemente básico com constantes mudanças de contexto, pejado de artefactos linguísticos como a mudança entre o discurso na primeira e na terceira pessoa. Interroguei-me como podia ser este texto uma das maiores obras na língua árabe e a resposta é a própria pergunta. O Alcorão é maioritariamente uma prosa poética escrita em árabe. Traduzi-lo retira-lhe o estilo e a beleza fonética e reduz muitas frases que contribuem para ambos a frases simples, aparentemente infantis. Se quiseres testar o quanto se perde na tradução, lê as legendas deste vídeo. O Alcorão é para ser lido e recitado em árabe.
Isto levanta grandes problemas. Por exemplo, existem sites para auxiliar à compreensão do Alcorão. Num deles, cada verso tem três traduções diferentes do árabe para o inglês e se é verdade que o resultado final é gramaticalmente similar, a interpretação pode ser ligeiramente diferente.
A minha leitura do Alcorão leva-me a pensar que se o dividíssemos pelos grupos de pessoas a que se refere, teríamos vários livros muito diferentes.
Alá é bondoso e terno para os muçulmanos. Tudo lhes proporciona, nesta vida e na próxima.
As regras não se limitam à pratica do bem. Existem regras que regulam a vida social e a vida privada. As punições vão desde alimentar e vestir quem precisa até à morte, dependendo da gravidade da falha. No entanto é interessante observar que o arrependimento pesa consideravelmente a favor do autor da falha, até nos crimes mais graves e que o perdão da falha é uma peça importante da moral expressa no Alcorão. As regras estão maioritariamente ligadas à propriedade, ao casamento e à vida sexual.
Há um ponto interessante no que toca a mulheres. A única que é tratada pelo nome próprio é Maria, mãe de Jesus. Para se entender a diferença em relação a todas as outras mulheres, se Maria fosse referida da mesma forma que as restantes, seria sempre "Mãe de Jesus" e não "Maria, mãe de Jesus".
Se por um lado o povo do livro é visto como crente e iluminado, é visto por outro lado como mentiroso, principalmente os cristãos. É mentira que Jesus é filho de Deus porque Deus não tem companhia. É mentira que Deus são três entidades (a santíssima trindade) porque Deus é uno.
A relação do Alcorão com o povo do livro é inconstante. Em certos pontos considera-os maioritariamente justos (o equivalente a ser muçulmano) e noutras maioritariamente injustos (o equivalente a ateus e politeístas). O povo do livro está algures entre estes dois grupos, uma espécie de purgatório de religiões em que o céu é o Islamismo e o inferno é tudo o resto. Têm por isso um tratamento preferencial em relação a todos os outros por parte dos muçulmanos mas a interacção com estes deve ser cautelosa.
Os iníquos são os ateus e os politeístas. São cegos, surdos, maus e têm como único objectivo troçar dos crentes, desencaminhá-los da fé ou enganá-los. Escrevi há uns tempos sobre in-groups e out-groups. Os iníquos são o arquétipo do out-group. Não são referidas características humanas positivas e exageradas características humanas negativas.
O comportamento de Alá em relação aos iníquos contrasta violentamente com o comportamento de Alá em relação aos restantes grupos. Encontrei um Alá vingativo que queima pessoas no inferno e que lhes substitui a pele para as queimar outra vez para toda a eternidade. No processo serve-lhes água a ferver para que bebam. Esta descrição ou parte dela é repetida múltiplas vezes ao longo do Alcorão.
No caso do Alcorão a distorção é considerável e os impactos são terríveis. Se é verdade que os iníquos são vistos como sub-gente, também é verdade que cabe em exclusivo a Alá o seu castigo no Dia do Juízo Final. A instrução de Alá aos muçulmanos é de tolerância, inclusivamente religiosa. O castigo cabe a Alá. A paz cabe aos muçulmanos.
Não está escrito no Alcorão que apóstatas devem ser mortos. Não está escrito no Alcorão que infiéis devem ser mortos. Não está escrito no Alcorão que homossexuais devem ser mortos. Fala para estes casos do castigo de Alá, mas não é de todo explicito que os muçulmanos devem castigar. Está escrito de certeza num sítio qualquer, provavelmente em hadith e fatwa, mas não no Alcorão.
Não estou a ser apologético do Islamismo ou do Alcorão. Há misoginia, há pelo menos um apelo à guerra, há até uma espécie de ameaça na forma de "tolerai-os por ora". Conforme estava a escrever estas últimas linhas lembrei-me da minha viagem a Marrocos. A imagem dos muçulmanos que lá conheci reflecte a imagem que criei ao ler o Alcorão. Em ambas é uma imagem superficial, admito, mas uma com a qual provavelmente conseguíamos conviver. Sobram-me muitas questões mas a mais profunda volta ao inicio do texto. Até que ponto é que a minha interpretação do Alcorão está também alterada por ter lido versões traduzidas? Até que ponto é que o próprio Alcorão e todos os outros textos religiosos se tornaram irrelevantes quando cada pessoa pode ter a sua própria interpretação?
Ler o Alcorão foi penoso. Pareceu-me um texto consistentemente básico com constantes mudanças de contexto, pejado de artefactos linguísticos como a mudança entre o discurso na primeira e na terceira pessoa. Interroguei-me como podia ser este texto uma das maiores obras na língua árabe e a resposta é a própria pergunta. O Alcorão é maioritariamente uma prosa poética escrita em árabe. Traduzi-lo retira-lhe o estilo e a beleza fonética e reduz muitas frases que contribuem para ambos a frases simples, aparentemente infantis. Se quiseres testar o quanto se perde na tradução, lê as legendas deste vídeo. O Alcorão é para ser lido e recitado em árabe.
Isto levanta grandes problemas. Por exemplo, existem sites para auxiliar à compreensão do Alcorão. Num deles, cada verso tem três traduções diferentes do árabe para o inglês e se é verdade que o resultado final é gramaticalmente similar, a interpretação pode ser ligeiramente diferente.
A minha leitura do Alcorão leva-me a pensar que se o dividíssemos pelos grupos de pessoas a que se refere, teríamos vários livros muito diferentes.
Muçulmanos
Os Muçulmanos são aqueles que acreditam sinceramente e praticam o bem. Praticar o bem não é de todo vago. Existem regras explicitas como a visita a Meca, rezar cinco vezes por dia, dizer o nome de Deus tanto quanto possível e muitas outras geralmente boas e quase todas religiosas e culturais. Praticar o bem inclui também tolerância para com os outros grupos e não agressão excepto se atacados. Finalmente entre ajuda e caridade são repetidamente anunciados como comportamentos muçulmanos. A prática do bem é tão relevante que serve de penitência por erros cometidos e é metade do bilhete para o paraíso. Acreditar em Alá só não chega.Alá é bondoso e terno para os muçulmanos. Tudo lhes proporciona, nesta vida e na próxima.
As regras não se limitam à pratica do bem. Existem regras que regulam a vida social e a vida privada. As punições vão desde alimentar e vestir quem precisa até à morte, dependendo da gravidade da falha. No entanto é interessante observar que o arrependimento pesa consideravelmente a favor do autor da falha, até nos crimes mais graves e que o perdão da falha é uma peça importante da moral expressa no Alcorão. As regras estão maioritariamente ligadas à propriedade, ao casamento e à vida sexual.
Mulheres
O Alcorão é um texto menos misógino do que eu antecipei. Não quer dizer que não o seja, porque é. No entanto é claro para mim que a misoginia presente é mais uma questão de regras sociais e importância feminina na sociedade em que foi escrito do que outra coisa qualquer. Se situarmos historicamente, as mulheres muçulmanas têm, no Alcorão, mais direitos do que muitas outras sociedades até há relativamente pouco tempo. Têm por exemplo direitos de propriedade e de sucessão. A já citada prática do bem implica, por exemplo, proteger e suportar viúvas e divorciadas. Acho que a melhor forma que tenho de explicar é que as mulheres no Alcorão não são objectos nem propriedade mas são cidadãos de segunda. Se tal era um avanço quando foi escrito, hoje em dia é totalmente desadequado.Há um ponto interessante no que toca a mulheres. A única que é tratada pelo nome próprio é Maria, mãe de Jesus. Para se entender a diferença em relação a todas as outras mulheres, se Maria fosse referida da mesma forma que as restantes, seria sempre "Mãe de Jesus" e não "Maria, mãe de Jesus".
O Povo do Livro
O povo do livro são, explicitamente, os judeus, os cristãos e os sabienos. São referidos positivamente por serem monoteístas e negativamente por terem um entendimento errado dos profetas e das escrituras. O Alcorão é a revelação de Deus que tem como objectivo clarificar as revelações anteriores. É a ultima revelação e é a ultima religião. É esperado por isso que o povo do livro se junte aos muçulmanos porque se entende que é óbvio, natural e expectável que o façam.Se por um lado o povo do livro é visto como crente e iluminado, é visto por outro lado como mentiroso, principalmente os cristãos. É mentira que Jesus é filho de Deus porque Deus não tem companhia. É mentira que Deus são três entidades (a santíssima trindade) porque Deus é uno.
A relação do Alcorão com o povo do livro é inconstante. Em certos pontos considera-os maioritariamente justos (o equivalente a ser muçulmano) e noutras maioritariamente injustos (o equivalente a ateus e politeístas). O povo do livro está algures entre estes dois grupos, uma espécie de purgatório de religiões em que o céu é o Islamismo e o inferno é tudo o resto. Têm por isso um tratamento preferencial em relação a todos os outros por parte dos muçulmanos mas a interacção com estes deve ser cautelosa.
Os Iníquos
Toda a violência do Alcorão recai sobre este grupo. Para os restantes grupos podemos dizer que o Alcorão foi escrito há quase 1500 anos, logo, por ser um texto do seu tempo e com o massajar do tempo podemos encontrar formas de moderar mentalidades com base na já referida tolerância explicita. Não vejo como tal é possível para os iníquos.Os iníquos são os ateus e os politeístas. São cegos, surdos, maus e têm como único objectivo troçar dos crentes, desencaminhá-los da fé ou enganá-los. Escrevi há uns tempos sobre in-groups e out-groups. Os iníquos são o arquétipo do out-group. Não são referidas características humanas positivas e exageradas características humanas negativas.
O comportamento de Alá em relação aos iníquos contrasta violentamente com o comportamento de Alá em relação aos restantes grupos. Encontrei um Alá vingativo que queima pessoas no inferno e que lhes substitui a pele para as queimar outra vez para toda a eternidade. No processo serve-lhes água a ferver para que bebam. Esta descrição ou parte dela é repetida múltiplas vezes ao longo do Alcorão.
O que aprendi com o Alcorão...
Muito do que li no Alcorão são provas ad nauseam da existência de Deus. Perdi a conta de quantas vezes Moisés lançou o cajado ao chão e de quantas cidades Deus destruiu. Estes trechos dizem-me pouco. O que me diz muito e o verdadeiro motivo porque quero ler os textos sagrados é para entender que impacto podem ter e quão distorcida é a interpretação actual.No caso do Alcorão a distorção é considerável e os impactos são terríveis. Se é verdade que os iníquos são vistos como sub-gente, também é verdade que cabe em exclusivo a Alá o seu castigo no Dia do Juízo Final. A instrução de Alá aos muçulmanos é de tolerância, inclusivamente religiosa. O castigo cabe a Alá. A paz cabe aos muçulmanos.
Não está escrito no Alcorão que apóstatas devem ser mortos. Não está escrito no Alcorão que infiéis devem ser mortos. Não está escrito no Alcorão que homossexuais devem ser mortos. Fala para estes casos do castigo de Alá, mas não é de todo explicito que os muçulmanos devem castigar. Está escrito de certeza num sítio qualquer, provavelmente em hadith e fatwa, mas não no Alcorão.
Não estou a ser apologético do Islamismo ou do Alcorão. Há misoginia, há pelo menos um apelo à guerra, há até uma espécie de ameaça na forma de "tolerai-os por ora". Conforme estava a escrever estas últimas linhas lembrei-me da minha viagem a Marrocos. A imagem dos muçulmanos que lá conheci reflecte a imagem que criei ao ler o Alcorão. Em ambas é uma imagem superficial, admito, mas uma com a qual provavelmente conseguíamos conviver. Sobram-me muitas questões mas a mais profunda volta ao inicio do texto. Até que ponto é que a minha interpretação do Alcorão está também alterada por ter lido versões traduzidas? Até que ponto é que o próprio Alcorão e todos os outros textos religiosos se tornaram irrelevantes quando cada pessoa pode ter a sua própria interpretação?