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A lenta morte da liberdade de expressão


Na China foi usada uma forma de tortura e execução particularmente doentia chamada Lingchi. Consistia em cortar pequenos pedaços de carne do torturado. O processo era lento e penoso e na Europa, embora tanto quanto sei, nunca tenha sido praticado, ganhou a alcunha da Morte dos Mil Golpes.

Nos últimos meses tenho estado particularmente atento à morte dos mil golpes da liberdade de expressão. Pedacinho a pedacinho, fatia a fatia, tão lenta, tão tortuosamente lenta que mal se nota mas está a ocorrer. Está a ocorrer nos media, nas redes sociais, nas nossas conversas do dia-a-dia e nas nossas empresas sobre o véu enganador do "isso é ofensivo". Tenho três grandes preocupações e essas são a minha maior motivação para escrever este post.

A liberdade de expressão é importante

A liberdade de expressão é o pilar central da democracia e da cidadania. Sem liberdade de expressão não existe espaço livre para debate de ideias nem para apresentação de evidências que não corroborem o status quo. Sem liberdade de expressão não existe contraditório, não existe avanço social, não existe tudo aquilo que caracteriza a vida nas democracias liberais europeias. A liberdade de expressão é a primeira e mais importante liberdade de uma sociedade.

A liberdade de expressão tem uma outra face menos conhecida: a liberdade de informação. A liberdade de informar e ser informado. A liberdade de informação é tão importante quanto a de expressão. Já volto a este ponto...

É importante salientar que em Portugal como em muitos outros países, a liberdade de expressão é absoluta mas a difamação, a injúria, a incitação ao crime e à discriminação são ilícitas... e bem, digo eu. Porque tão importante quanto o direito de poder expressar qualquer opinião licita é a responsabilização por qualquer opinião ilícita. E quem actua sobre estas é o sistema de justiça.

A falácia do politicamente correcto

Esta morte dos mil golpes tem duas facas. A primeira é a falácia do politicamente correcto. Digo que é uma falácia com esta abertura porque estou convencido que um dia o politicamente correcto vai mesmo ser considerado uma falácia, um erro lógico.

O politicamente correcto defende a não ofensa. Originalmente uma ideia interessante para proteger grupos desfavorecidos com o objectivo de um discurso mais inclusivo, tornou-se, como tudo o que ultrapassa os limites da razoabilidade, numa versão distorcida que se esqueceu dos seus próprios objectivos. Quando se esquecem os objectivos nascem aberrações como versões censuradas dos livros de Mark Twain e sim aconteceu mesmo.

Confunde-se a não ofensa implícita do politicamente correcto com o respeito pelo outro mas como se esqueceu o objectivo inicial caímos na armadilha de não se poder ofender ninguém. Nem todas as opiniões nem todas as pessoas são dignas de respeito e este conquista-se. Além disso todas as boas ideias ofenderam alguém, do fim da escravatura ao sufrágio universal, passando por milhares de outras excelentes ideias que avançaram a humanidade, houve sempre alguém que ficou ofendido!

Existe uma faixa dos liberais que vai dizer que ainda bem que essas ideias ofenderam alguém e que devemos ofender essas pessoas, aliás esses mesmos liberais não têm feito outra coisa em universidades nos EUA e mais recentemente no clube de debate da universidade de Oxford. Nestes casos o problema não é os liberais ofenderem mas sim tentarem impedir o debate porque alguém no painel é ou diz qualquer coisa. Se o que essa pessoa disser for licito, há liberdade de expressão e de informação. Se for ilícito há sistema judicial. O que não pode haver são pessoas que porque discordam limitam a liberdade de expressão. Para ser claro, eu defendo, à luz da mesma liberdade de expressão que estes liberais têm o direito de se manifestarem, de gritarem e até de ofenderem seja qual for o alvo mas não têm o direito de impedir que o dito alvo se desloque a uma plataforma que o convidou para debater sejam que ideias forem desde que licitas. Sejamos completamente claros: estes liberais querem-nos calar.

E o que está a acontecer é exactamente isto. Qualquer opinião que não se alinhe em absoluto com a ideologia liberal nas universidades dos EUA e recentemente no Reino Unido, recebe um rótulo e o seu autor passa a ser persona non grata. Se a universidade convidar o dito autor para apresentação ou debate, os alunos reúnem-se para o impedir, se necessário for com violência física.

Isto é o politicamente correcto disfarçado de liberdade de expressão a cortar fatias à liberdade de expressão.

Os paladinos conservadores

A segunda faca desta morte de mil golpes são os paladinos conservadores. Não quer dizer que não existam liberais a abordar a questão porque existem. Ironicamente estão a ser apelidados de racistas e outros mimos. Entre os liberais atingidos encontram-se Noam Chomsky, provavelmente o intelectual mais à esquerda dos EUA e Bret Weinstein, um brilhante biólogo, liberal convicto, que sofreu a ira dos alunos da sua universidade e acabou por se demitir. A história de Bret Weinstein tem tanto de irónica como de triste porque o que levou ao problema foi ele defender a manutenção de uma tradição anti-racismo em vez de uma outra que era racista... contra os alunos brancos.

O problema é que lado a lado com estes encontram-se conservadores e até ultra-conservadores e alguns deles têm agendas muito próprias. Jordan Peterson que goza de período de graça popular é neste momento o maior paladino da liberdade de expressão. Infelizmente é o mesmo Jordan Peterson que quer acabar com departamentos de Humanidades das universidades, que diz que aquilo em que acreditamos e os motivos pelos quais agimos se podem encontrar na Bíblia, que diz que as alterações climáticas são uma mera hipótese e que os ateus lá bem no fundo são todos Cristãos e os que não são só podem ser criminosos sem moral interpretando livros de Dostoyevsky como se fossem não-ficção. Juntam-se a ele a Prager University, que não é uma universidade mas uma organização não-lucrativa mantida por evangelistas ultra-conservadores e figuras como Ben Shapiro, entre outros.

Se existem entre estes conservadores alguns que são, acredito eu, genuinamente a favor da liberdade de expressão, existem outros para quem a liberdade de expressão é uma arma tão boa e tão forte quanto o politicamente correcto, ou seja, são armas de um combate ideológico e fora isso significam muito pouco.

A faixa liberal que está a limitar a liberdade de expressão está a dar poder e plataforma aos mais inteligentes e influentes conservadores e ultra-conservadores. Porquê? Porque os moderados, conservadores ou liberais, não aceitam os limites à liberdade de expressão licita. Por isso vou acabar em letras gordas para ser claro.

Por muito que não concordes com alguém, por muito que alguém te ofenda, por muito que alguém ofenda alguém que tu protejas ou defendes, não tens nem o direito nem o dever de limitar as suas opiniões, desde que licitas, nem de impedir que eu as oiça, aceite ou refute.

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