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Breve História do Movimento Anti-Vaxx


Tinha este tema na lista desde o inicio do blog. Havia um caminho que queria percorrer, primeiro explicar porque acredito no que acredito, depois falar sobre ciência e finalmente porque acredito na ciência. Só depois daria atenção a temas como a controvérsia à volta das vacinas na esperança que estas camadas de informação servissem de fundação para desmontar a irracionalidade por trás deste e de outros assuntos.

Acontece que ontem um amigo meu deu a saber nas redes sociais que quando chegou ao carro encontrou um panfleto anti-vacinas no pára-brisas. A4, impresso de ambos os lados com informação que navega entre a teoria da conspiração, a ausência de cepticismo e o analfabetismo cientifico. Este panfleto, partilhado abaixo, muda tudo.


Sinto que deixei de ter tempo para me dirigir a este assunto calma e metodicamente. Posso não ter feito o suficiente para uma explicação mais profunda mas sinto-me na obrigação de, no mínimo, contar a história do actual movimento anti-vacinas, na forma mais reduzida que conseguir.

Em 1998 o Dr. Andrew Wakefield publicou no Lancet[1] os resultados de um estudo onde mostrava uma relação temporal entre a vacina MMR[2] e incidência de autismo e doenças gástricas e intestinais. Alguns detalhes que são relevantes para o resto do post:

  1. O estudo incidiu sobre 12 crianças com atrasos de desenvolvimento e problemas gastrointestinais
  2. O tipo de estudo realizado não testa nenhuma hipótese
  3. Foi estabelecido um tempo médio entre a vacina e os sintomas em 8 das 12 crianças
Estes pontos são relevantes por vários motivos. A natureza do tipo de estudo realizado é descritiva e exploratória. Não existe nada de conclusivo no estudo, nunca existiu. Não estou com isto a desmentir o estudo, apenas a apontar que existem tipos de análise diferentes para objectivos científicos diferentes. No caso deste tipo de estudo o objectivo é descrever e explorar, e não demonstrar causalidade. Este estudo descreve que foi medido um intervalo de tempo entre a vacina e os sintomas mas não estabelece que a vacina provoca autismo e/ou doenças gastrointestinais. Outro ponto relevante é que o número de observações (12 crianças) e o facto de todas terem os efeitos estudados invalida o desenho de um estudo que seja conclusivo.

O facto de haver um intervalo de tempo observado entre a toma da vacina e os sintomas era, no mínimo, um sinal a ser investigado dada a ubiquidade da vacinação. A comunidade cientifica moveu-se para replicar o estudo do Dr. Wakefield e sua equipa. Replicação de estudos e particularmente de resultados e previsões é um dos pilares do método cientifico e era urgente replicar a pesquisa. Estes estudos não confirmaram o estudo original. E a história devia ter acabado aqui porque até aqui é tudo normal, cientificamente falando.

Mas não acabou...

Entre desinformação patrocinada pelos media e a histeria dos pais que sabem melhor do que os médicos quais são as intervenções clinicas adequadas às suas crianças nasceu e cresceu esta alucinação colectiva chamada movimento anti-vacinação. Documentários, websites e tablóides aglomeraram-se na busca da verdade, pejados de falácias e desinformação. Uns por genuína preocupação ainda que injustificada, outros porque histeria vende e vende bem. Atrelado ao pânico do autismo apareceram outras versões dos malefícios das vacinas.

O resultado foi que pais deixaram de vacinar crianças o que já levou ao reaparecimento de pequenos surtos de sarampo nos EUA e na Europa. A comunidade médica e cientifica tem vindo a reagir ao longo destes 20 anos, com estudos conclusivos para testar a relação entre a vacinação e os perigos que alarmam a opinião pública. O último estudo que encontrei foi um meta-estudo[3] com 10 estudos e 1.2 milhões de crianças observadas. O meta-estudo demonstrou não existir qualquer relação entre a vacina MMR e autismo.

Enquanto escrevi este texto debati-me se devia ou não voltar ao Dr. Wakefield porque há mais para contar sobre ele, sobre o estudo original e sobre os estudos que conduziu depois mas decidi não o fazer porque a controvérsia é ruído desnecessário. O que interessa neste caso são as evidências por isso vamos comparar o estudo original e o último que eu encontrei numa linguagem simples e clara.
  • O estudo original da equipa do Dr. Wakefield observou 12 crianças mostrou haver um intervalo de tempo especifico entre a toma da vacina MMR e a identificação de complicações de aprendizagem e gastrointestinais em 8 dessas crianças.
  • O último estudo que encontrei, um meta-estudo de 10 estudos, observou 1.2 milhões de crianças não encontrou relação entre vacina MMR e autismo.
É possível que as vacinas causem, entre outros problemas, autismo? Sim, é. Foi demonstrado por estudos independentes que as vacinas causem, entre outros problemas, autismo? Não, não foi. O que é que isto quer dizer exactamente? Quer dizer que considerando a pesquisa independente publicada a probabilidade de as vacinas causarem, entre outros problemas, autismo, é tão baixa que podemos dizer que é zero.

Vinte anos depois há quem esteja a por panfletos em pára-brisas de carros, a espalhar desinformação, a alarmar desnecessariamente. Com o conhecimento que temos a única forma que temos de caracterizar este panfleto é de criminoso. É um atentado à saúde pública. Tem no fundo de uma das páginas a frase "Exige a verdade" e eu concordo em absoluto. Devemos exigir a verdade, começando por saber quem imprimiu e distribuiu estes panfletos para que seja responsabilizado pela dor desnecessária que irá causar.

[1] O Lancet é um dos mais conhecidos e prestigiados jornais de publicação cientifica referente a medicina.
[2] Esta vacina é conhecida em Portugal como VASPR e é a vacina da rubéola combinada com a de sarampo e parotidite epidémica.
[3] Um meta-estudo é um estudo de estudos. 

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